Última atualização em 05/04/2020 por admin
‘O mundo devia ter agido há 15 anos, após gripe aviária’
Para cientista italiano, em seu país prevaleceu o ‘senso de negócios’ e todos devem se preparar para próxima pandemia
O momento de o mundo se preparar contra a covid-19 foi perdido há quase 15 anos, após surgirem os primeiros casos de gripe aviária, na Ásia. O vírus H5N1, que matou quase uma centena de pessoas, devia ter sido um aviso. Agora, o mundo deve aprender com o coronavírus (Sars-Cov-2) e se preparar para a próxima pandemia. É o que diz o médico e farmacologista Sílvio Garattini, de 91 anos. Trancado em casa em Bérgamo, na Lombardia, epicentro do surto que devasta o norte de seu país, o cientista italiano preside desde 1962 o Instituto de Pesquisas Farmacológicas Mario Negri, de Milão.
• No início, não se acreditava que o coronavírus chegasse a esse ponto. Na epidemia de influenza, em 1918, foi do mesmo jeito. Por que as coisas são sempre assim?
Porque não se preparam, sobretudo, porque há a tendência de pensar que aquilo que acontece em países distantes não ocorre depois em nossos países. E nos esquecemos que, em um mundo globalizado, viajamos para qualquer lugar, assim como as mercadorias e os vírus.
• O senhor disse que é difícil entender o que aconteceu na Lombardia. O senhor poderia explicar?
As coisas difíceis são as ligadas às decisões drásticas. Na Lombardia, agiu-se corretamente na cidade de Codogno. Nós a isolamos, mas não pensamos nos outros focos da doença. Por exemplo, em Nembro e em Alzano Lombardo, onde foram muitos os infectados. Ali não se tomou a decisão de fechar. E essas cidades são contíguas a Bérgamo, que foi atingida. Depois, fez-se em Bérgamo algo extraordinário. Talvez nenhuma rede hospitalar no mundo fosse capaz desse heroísmo. Mas, no começo, foi uma bagunça. Faltavam todos os equipamentos de proteção individual. E ainda agora a Defesa Civil não consegue enviar à cidade todas as máscaras necessárias. Tudo porque aqui não aconteceu uma preparação adequada. Claro que, para se preparar, é necessário tempo. Na última hora, faz-se o que se pode.
• O senhor chamou a atenção para um excesso de “sentido dos negócios”. O que queria dizer?
Quero dizer que, em vez de fechar rapidamente o que se devia fechar, prevaleceu a ideia de que tudo devia permanecer aberto, como lojas, bares e negócios, ou seja, todos os lugares que têm mais possibilidade de contágio. E, só quando as coisas começaram a piorar, é que se tomou a decisão de fechar, salvo os serviços essenciais. Mas devíamos ter fechado tudo o que não era necessário muito antes. Era impopular, mas quem é responsável deve tomar a decisão.
Era possível estar preparado para um vírus assim?
É preciso se preparar antes, ter um plano. Quando tivemos a epidemia da influenza aviária, houve uma grande letalidade. Aquele era o momento, terminada a emergência, de se preparar para a chegada de uma outra epidemia. Mas, infelizmente, nada foi feito. O que quero dizer com se preparar? Antes de tudo, ter um programa. Ter em mente quais são as coisas fundamentais em uma epidemia. A segunda coisa é ter o material, a estrutura e as coisas úteis, se não prontas, ao menos sabendo como fazê-las. E aqui não é errado ter coisas guardadas para que, em pouco tempo, se possa fazer um hospital com tudo o que é necessário para começar a enfrentar a primeira onda do problema.
• A maioria das infecções nessa pandemia aconteceram em ambiente hospitalar. Como enfrentar a falta mundial de equipamentos para as equipes médicas?
O problema devia ser resolvido no início, quando não havia essa grande competição internacional para ter o material necessário. Tenho consciência de que dizer isso agora é fácil. Essa pandemia nos fez entender que havia muita coisa que erramos ou nem havíamos pensado. É importante não deixar isso para trás quando tudo acabar. Em vez disso, este deve ser o momento para pensar e construir um sistema para que isso não se repita ou, pelo menos, não seja tão ruim.
• Como os governos devem gerir as informações na crise?
Deve haver um canal que seja usado pelos governos que represente a voz oficial não deles, mas das pessoas competentes que administram o problema. Isso deve ser feito por pessoas que a opinião pública julgue confiáveis. Se deixar em outras mãos, as pessoas vão pensar que, sendo do governo, defenderão só os interesses do governo, e não da população. É preciso que exista uma oficialidade confiável.
• O senhor acompanhou as pesquisas sobre a hidroxicloroquina. A cura está mesmo próxima?
Há substâncias que deram resultados promissores, entre essas a cloroquina, mas o melhor é fazer as experiências de modo controlado. De outra forma, nos arriscaríamos a tratar pacientes com substâncias que, infelizmente, não servem para nada. E, em vez disso, podem até ter efeitos tóxicos. A hidroxicloroquina não pode ser subministrada a todos. Não deve ser dada a pacientes com problemas cardíacos, pois ela pode ser muito tóxica para o coração. Só uma pesquisa clínica controlada poderá verificar sua eficácia.
• Desculpe, professor, mas devo cometer uma indiscrição: posso perguntar que precauções o senhor tomou contra o vírus?
Ficar em casa e fazer meu trabalho: os artigos, as entrevistas. Saio só para obter o que comer. A única recomendação que se pode fazer às pessoas é: fiquem em casa, lavem frequentemente as mãos e sigam as regras de higiene aí no Brasil.